OS PÉS, O CHÃO E AS HISTÓRIAS
Encontrei um tema que eu tenho à minha disposição onde quer que eu esteja com a minha câmera. Saio pelas ruas fotografando pés e chão das pessoas que estão ao meu redor. Eu me pergunto se elas, ao escolherem os sapatos, pensaram se eles combinam com o chão que vão pisar. Você faz isso? Não me refiro aqui à adequação ao tipo de chão, como areia, asfalto ou paralelepípedo. Também não estou falando do conforto dos sapatos apropriados para pés chatos, com joanetes e por aí vai. Penso em combinar esteticamente, tipo esse sapato fica bem com esse chão ou não.
Quando vejo a foto pronta, vem à minha cabeça uma história que combinem aqueles pés com aquele chão. Para mim, a dona dessas pernas com meias rendadas acertou em cheio! A foto foi feita na calçada em frente ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro, à noite. O teatro tem um público cativo, apreciadores de dança e música. A moça da foto faz parte desse grupo e conhece bem a calçada, também rendada, da Cinelândia. Lembrou-se disso ao escolher os sapatos e as meias.
Essa formanda, por exemplo, não se lembrou do chão de areia do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Ela se esqueceu do conforto. Será que se lembrou da combinação?
Esse projeto que eu chamo de Pés-Chão é uma brincadeira infinita, inusitada e divertida. Infinita, porque tenho esse assunto à minha disposição até o dia em que eu me cansar ou que a Lei da Gravidade deixar de existir, o que eu sei que é uma piadinha sem sentido. Inusitada, porque eu desconcerto as pessoas que demoram um pouco para perceber que eu estou fotografando seus pés. Divertida, porque me entretenho com os pés que pisam o chão ao meu redor e me pergunto: Será que os donos dos pés pensaram em combinar os sapatos com o chão ao saírem de casa? É um grande passatempo, feito sob medida para filas de banco, filas de ônibus, sala de esperas lotadas e outros exemplos que vocês podem acrescentar. É tão bom que não preciso estar com a minha câmera, nem me preocupar em perder uma combinação perfeita. Afinal somos 7 bilhões e meio de pessoas, e 15 bilhões de pés, em 510 milhões de quilômetros quadrados de superfície do Planeta Terra.
O que estou fazendo é um trabalho autoral. A motivação para procurar pés, chão e histórias é minha. Gosto de pensar que todos nós temos nossos pés no chão do nosso planeta, o que nos lembra o quanto estamos interligados e ligados à Terra. Tudo começou quando estava um dia no Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB) aguardando uma peça já atrasada. Havia algum problema e uma funcionária do CCBB com uma saia longa e sapatilhas, ambas na cor bege/tijolo, se deslocava de um lado para o outro esbaforida e atarefada. Eu ali esperando e assistindo o vai e vém da dona da saia e dos pés. Parecia uma partida de tênis. Percebi que as sapatilhas tinham exatamente o mesmo tom dos detalhes dos pequenos losangos cor de tijolo que compõem com o mármore branco o chão do Centro Cultural. A dona das sapatilhas pisa diariamente nos losanguinhos de mármore bege e só pode ter escolhido as sapatilhas cor de tijolo, porque queria combinar os pés com o chão. Fiz algumas fotos, que não ficaram boas, mas foi aí que a brincadeira começou.
Uma vez no Museu de Arte do Rio uma pessoa saía da minha frente toda vez que eu me aproximava dela. Ela achava que não estava me deixando ver a exposição. Ficamos assim nessa brincadeira de gato e rato. Até que ela percebeu que eram os seus pés que eu fotografava e veio conversar comigo. Como eu poderia não caçar a saia com estampa de zebra e a sapatilha preta no chão de tábua corrida? Jamais. Era irresistível. Para esse trabalho gosto de equipamentos grandes, que não passam despercebidos, e uso objetivas normais e grande angulares, que me aproximam do assunto. Adoro desconcertar as pessoas.
Agora vou forçar uma barra, mas como não se apaixonar pelas gotículas de água, pelas marcas do solado e pelos furinhos da biqueira do sapato de dança? Os meteorologistas melhoram a cada dia, mas não acertam sempre. Além de combinar os pés com o chão, o dançarino também teria que ter levado em conta a previsão da chuva, que nesse dia não poderia ter falhado.
Até agora, encontrei mais pés femininos que combinassem com o chão. Talvez porque as mulheres variem mais os tipos de sapatos. Os pés do segurança não combinam com o chão, mas conversam tão bem com as sombras, que também entraram na brincadeira.
Muitas vezes, nem é preciso me esforçar muito. Os detalhes, a combinação e coesão surgem prontos na minha, como essas pernas torneadas e as pequenas colunas brancas.
A necessidade de tomar decisões rápidas é um desafio, e acredito que continuará a ser, enquanto eu fotografar, porque afinal, se não fosse, perderia um pouco da graça. Prefiro o modo manual quando faço um trabalho para mim mesma, ou seja, um trabalho autoral. Não o uso sempre. Ter o controle sobre os três pilares da fotografia, ISO, obturador e diafragma, conhecido como o triângulo da exposição, faz com que eu tenha mais controle sobre o resultado final. Os raciocínios que antecedem a tomada de decisão são fundamentais, que é o que vou explicar a seguir sobre três das fotos mostradas aqui.
A foto das pernas rendadas que combinam com a calçada da Cinelândia foi feita às dez horas da noite e traz a beleza das fotos noturnas. O sol não nos ilumina mais. Precisamos das luzes artificiais que vêm de mais de uma direção. Como a luz disponível era pouca, optei pelo ISO 1600, com velocidade 1/50 segundos e diafragma f2.8. Mesmo assim, a foto ficou subexposta e precisou ser clareada com o Adobe Photoshop Lightroom. A subexposição e o ISO alto resultaram no efeito granulado, que eu gosto.
O balançar da saia com estampa de zebra era lindo e quis registrar esse movimento. Optei por uma velocidade baixa, 1/15 segundo, com diafragma f 2.8 e ISO 1600. Estava com a objetiva 35mm, equivalente a 52mm, porque usava uma câmera não full frame, a Nikon D200. Opto por uma objetiva normal ou grande angular porque preciso me colocar próxima às combinações que eu vejo.
Para as fotos das gotinhas de água, usei o ISO 3200, porque estava fotografando dança e queria congelar o movimento dos pés que desafiam a gravidade. Mesmo que o dançarino tivesse os pés bem plantados no chão, a escolha de um ISO tão alto foi necessária porque a luz era pouca e ainda precisei usar o diafragma f 4.0 e velocidade 1/100 segundos.
Encaro a fotografia como uma profissão e também como uma maneira de estar no mundo. Percebo e compreendo a mim mesma, e a realidade que está a minha volta, através da fotografia e do ato de fotografar. A observação constante das pessoas que eu encontro me mantém conectada com as pessoas que estão comigo no mesmo momento e no mesmo lugar. Gosto de procurar detalhes e de encontrar coesão entre eles.