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Nobuyoshi Araki e sua jornada fotográfica sentimentalista
Há 45 anos um jovem fotógrafo japonês auto-publicava aquele que viria a ser um dos grandes photobooks japoneses de todos os tempos. Seu nome: Nobuyoshi Araki, sua obra-prima: Sentimental Journey (em jap. Senchimentaru na tabi – 1971). O livro retrata em 108 imagens em p/b momentos da lua-de-mel de Araki san e sua esposa Yoko Aoki. De forma direta, com uma certa sensualidade melancólica, às vezes explícita, intimista, mas sem grandes arroubos estéticos, a obra-prima arakiana não remete a nada do que o fotógrafo japonês se tornará mundialmente conhecido: imagens de kinbaku-de (estilo japonês de bondage).

Ao viajar pelas páginas de Sentimental Journey percebemos uma narrativa simples, autobiográfica e uma estética associada muito mais a um álbum de memórias de um casal do que propriamente um livro de fotografias para ser publicado, ou seja, literalmente “tornar-se público”. Ato corajoso em se tratando da sociedade japonesa, onde os espaços público e privado são devidamente delineados, quase herméticos. No entanto, esta maneira de narrar – confessando a intimidade – é oriunda da literatura realista japonesa do início do século XX denominada “I-Novel” (em jap. Watakushi shôsetsu) e se transmutou para a fotografia, estando em voga nos photobooks japoneses entre meados dos anos 1960 e ao longo da década seguinte.
Vinte anos depois, Yoko veio a falecer de câncer e Araki homenageou a esposa com a publicação de Sentimental Journey/Winter Journey (1991), uma despedida em forma de poesia imagética com fotografias que nos levam aos recônditos da memória “sentimental” arakiana. Associada aos “espaços afetivos” do casal, a obra apresenta fragmentos íntimos, espaços domésticos vazios, a querida gata Chiro, culminando com a imagem de Yoko post-mortem cercada de flores. Silêncios que nos remetem a uma jornada de reflexão sobre a atemporalidade das relações humanas eternizadas em grãos monocromáticos.
Anos depois em uma entrevista, Araki confessou que foi a sua falecida esposa que o tornou um “F”otógrafo. Certamente a consubstanciação de sua amada do espaço (quase) sacro do universo privado japonês ao universo profano-público em Sentimental Journey pavimentou um caminho sem volta para a sua jornada fotográfica e sentimental.

O ato vanguardista de fotografar a intimidade, tematizando as namoradas ou as esposas – verdadeiras musas – em sua intimidade ou em atos banais e PUBLICÁ-LAS em revistas especializadas ou livros, esteve em voga no Japão em meados dos anos de 1970, como podemos ver na obra de grandes fotógrafos como Hajime Sawatari (Nadia, 1973), Shunji Dodo (Setsuko, s/d), Masahisa Fukase (Yohko, 1978) e do próprio Araki (Yoko My Love, 1978).
Formado em fotografia (1963), Araki san publicou mais de 350 livros, inicialmente transitando entre captar um universo mais candid das ruas da capital japonesa, Tóquio e o trabalho na famosa agência de publicidade japonesa Dentsu, foi só no início da década de 1970 que ele efetivamente desenvolveu seu estilo baseado na relação: vida/morte/amor/erotismo. Abandonar a segurança do trabalho de assalariado em 1972 para se dedicar à fotografia como free-lancer foi o seu grande salto no universo caótico e fertílissimo da fotografia japonesa entre os anos de 1965-1978. Diferentemente dos seus contemporâneos como o designer da imagem Daido Moriyama ou do poeta da imagem Takuma Nakahira, já apresentados nesta série de artigos, Nobuiyoshi Araki sempe buscou no ato de fotografar a transcendência da relação homem/mulher, sem glamour ou romantismo, mas de forma sinestésica, sentimentalismo puro.
Chamado pela imprensa japonesa de Tensai Araki, algo como “Genial Araki”, o fotógrafo japonês tem como leitmotv não provocar o olhar como muitos pensam, mas direcioná-lo, seja nas ruas ou em estúdio, sem pudores, evocando memórias eróticas. Para ele a relação entre o fotógrafo e o fotografado(a!) deve ser direta – “eye-to-eye” – o olhar deve ser íntimo, sem subterfúgios, uma verdadeira tour de force erotizante. Abaixo uma dose da “arakinofilosofia”:
Without a jealousy, a photograph cannot be taken.
Shooting photographs is both foreplay and afterplay.
The lens is a phallus.
Film is regenerated hymen.*
Para finalizar, uma curiosidade
Nobuyoshi Araki foi o primeiro fotógrafo japonês com o qual a obra tive contato e fiquei bem surpreso!Explico. Em fins da década de 1990 quando eu era (um jovem) professor História de um curso pré-vestibular (aka “cursinho”) em São Paulo, no final do ano e às vésperas do temido e concorrido vestibular da Universidade de São Paulo fui presenteado por um grupo de alunos com um grosso livro de fotos contendo imagens (eróticas? pornográficas?) de autoria de um tal “ARAKI”. O nome do livro: Tokyo Lucky Hole editado pela Taschen. O presente foi me dado em um “ato público” em frente a mais de 60 alunos…Tenho ele até hoje. Esta obra foi responsável por catapultar Araki san além das fronteiras fotográficas japonesas no início dos anos de 1990, além de gerar muitos debates – típicos de alguns críticos puritanos norte-americanos – acerca da carga erótica (ou pornográfica, para alguns) ou do utilitarismo do corpo feminino (i.e. “genitália feminina”) na obra arakiana. E este é o grande equívoco ao se deparar e (tentar) analisar fragmentos do extenso trabalho deste septuagenário e ativo – segundo ele, “pelo menos as lentes ainda estão eretas”- artista.
*Nobuyoshi Araki, ”The Photo Apparatus Between Man and Woman” trecho extraído da obra Setting Sun. Writings by Japanese Photographers organizado por Ivan Vartanian; Akihiro Hatanaka & Yutaka Kambayashi. Nova Iorque; Aperture Foundation, 2003. p. 145.
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