Não é culpa do pau
Pau de selfie pra cá, pau de selfie pra lá…
de Eduardo Parra, via Quesabesde
imagem: Shutterstock.com
Uma tela?! Quando chegou a minhas mãos a primeira câmera digital estranhei ver aquele pequeno televisor incrustado em sua parte traseira. Lembro que o convite a deixar de olhar pelo visor me assaltou como um autêntico contrassenso. Uma vez passada a surpresa, esse acessório parecia mais uma curiosidade do que uma verdadeira funcionalidade. Acostumado que estava a fotografar com câmeras reflex, aquela tela era como um detalhe geek, para fazer graça de vez em quando. E pouco além disso.
Lembro-me que até tapei com fita a tela de minhas primeiras reflex digitais porque eu era desses que seguia bradando que aquilo nem servia para tanta coisa. Me remexia e queixava-me ao ver como muitos abusavam do providencial monitor. Me enervava o gesto da genuflexão digital, que consiste em baixar a cabeça mecanicamente ao disparar para comprovar o resultado.
Passou um tempo, e aquelas telas deixaram de ser uma curiosidade para converter-se em um complemento indispensável. Primeiro ampliaram-se, para poder ver melhor a foto tomada, e logo articularam-se e tornaram-se táteis, tudo isso acompanhado de uma espetacular melhora de sua qualidade. Hoje em dia não é raro ver em um agrupamento de fotógrafos algumas mãos levantadas que vêm de um fotógrafo que, do chão, trata de enquadrar com a tela para tirar uma instantânea mais ou menos aceitável. É algo que se faz desde sempre, mas antes o fazíamos às cegas.
Ainda que seja um pouco custoso assimilar aquilo, é verdade que as telas — ainda mais quando são articuladas — representam uma clara vantagem do universo digital. E mesmo que tenha visto já mais de um usar a tela articulada de uma não especialmente barata SLR para fazer uma selfie, a tecnologia está aí e é cargo nosso saber aproveitá-la. E quando fala-se de uma tela, fala-se também de um disparo automático com detecção de sorriso ou piscadas. Ou um pau de m****.
Mas não nos confundamos. Que os usuários pervertam um novo invento não é culpa dos engenheiros que o desenvolveram, nem das marcas que o comercializam. A culpa é das pessoas, que não têm autocontrole e utilizam para todo momento e situação algo que possui finalidades claramente demarcadas. Digam se não, essas mulheres que em pleno inverno se empenham em usar minisaia sem meias, o esses homens que afirmam diante do espelho que a camiseta apertada não é ridículalonge dos arredores de um ginásio.
Não, tudo utilizado em excesso e à exasutão não apenas cansa, como pode converter-nos em estúpidos. O pau de selfie no é uma má ideia; pessoalmente não deixaria meu telefone nas mãos de um desconhecido na Puerta del Sol para que tire uma foto para mim, pois é provável que termine sem ele. Nem me parece um mau invento o “pau de m****” quando estás no topo de uma montanha e te dá vontade de ter uma foto de recordação. Não, o problema não é o pau, somos nós.
Porque, se nos abstrairmos um instante de nossa natureza de fotógrafos, não é muito difícil imaginar o que pensaram de nós aqueles que não piram com fotografia quando sacamos a câmera na metade de um passeio turístico em nossas férias ou pedimos mais um tempinho mais para clicar a mesma paisagem que acabamos de fotografar dez passos antes. Por certo pensaram “Outra maldita foto”.
Ou que pau de selfie ser um sucesso seja a consequência inevitável da explosiva mescla da exaltação de nosso ego nas redes sociais com a fobia que temos a gente na vida real. Graças ao pau de selfie agora podemos elevar à máxima potência a contradição: dizemos orgulhosamente no Facebook ante centenas de pseudo-amigos e quase desconhecidos onde estamos e o que fazemos sem o inconveniente de entabular uma conversa com outra pessoa de carne e osso para pedir-lhe que, por favor, tire para nós uma foto.
Ou ainda que quando vemos alguém empunhando um pau de selfie com o sorriso estampado na cara nos saia o monstro que levamos em nosso interior pode ser culpa de muitos fatores, mas seguramente não é culpa do pau.
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