Masahisa Fukase (1934-2012) entre corvos e musa(s)…
Sempre acreditei que todo grande fotógrafo (i.e. “artesão da luz”) é um “mentiroso”, “egoísta”e “contraditório” por natureza e não por ofício. Um obstinado com a sua arte, enamorado de si mesmo – não confundir com simples vaidade – constantemente atormentado por transitar no limite entre o fracasso e a perfeição, mas na essência um generoso. Enfim, um ser cujo sentido da palavra “realidade” se torna tão difuso que a sua (mínima) compreensão só é concebível ao vislumbrarmos o seu trabalho fotográfico cuidadosamente.
Artesãos da luz como os norte-americanos W. Eugene Smith (1918-1978) e Diane Arbus (1923-1971) poderiam se encaixar neste prólogo. Em terras nipônicas podemos colocar neste panteão o obssessivo fotógrafo Masahisa Fukase (1934-2012).
Fukase fez parte de uma geração de fotógrafos forjados em um contexto transitório do olhar nipônico (pós-1945), sua maneira de ver o mundo e dialogar com ele através – e unicamente – de uma câmera, condensa um realismo nostálgico, experimentação fotográfica, egotismo e melancolia, chegando ao limite de transmutar-se de sujeito para objeto na sua obra-prima Karasu.
Publicada fora do Japão com o título “The Solitude of Ravens” (em jap. Karasu, 1986) a obra foi escolhida pelo British Journal of Photography como o melhor livro fotográfico dos últimos 25 anos em 2010. E com certeza um das mais complexas – e perturbadoras – narrativas fotográficas já produzidas. Em termos estéticos seria um encontro entre a arte e o drama, um diálogo denso, silencioso e sem volta… Em termos psicológicos, podemos notar em Fukase uma busca quixotesca em compreender a “dor da perda”, a “sensação de solidão” representada pelo onipresente karasu (corvo). Segundo a interpretação dos autores Martin Parr (fotógrafo e atual presidente da agência Magnum) e Gerry Badger (crítico):
One climatic image of silhouetted birds in formation, wings outstretched against a grainy sky, metamorphoses into a wire news service image of overheard warplanes – a significant and traumatic image for postwar Japan.*
Essa purgação da(s) memória(s) sobre os efeitos da guerra por uma brilhante geração de fotógrafos japoneses como Tomatsu, Hosoe, Nakahira, Moriyama, Araki entre outros, pode ser representada através da busca de novas linguagens para representar o ethos japonês sob vieses completamente diferentes pelos fotógrafos citados. A narrativa pós-traumática criada por Fukase neste sombrio – e belo – projeto fotográfico que lhe consumiu cerca de oito anos, nos conduz desde a questionamentos instantâneos como: “Por que fotografar corvos?” Até: “É possível a partir da fotografia construir uma narrativa simbólica da dor?”. Observar corvos, fotografá-los de diferentes maneiras e em vários momentos por quase uma década para quê? E seria nesse repetitivo exercício que se encontra a cerne da obra de arte fotográfica fukasiana. A obssessão em fotografar corvos e ao mesmo tempo, a sua generosidade em “dividí-los” conosco, a partir de uma provocação do olhar ou seria “mal-estar do olhar”? Algo que tornou-se tão real que ao finalizar seu projeto Fukase comentou que havia “se tornado um corvo”…
O outro lado do binômio fukasiano, sua(s) musa(s), seria(m) a priori o elemento contrastante ao doloroso universo narrado acima. Menos denso e melancólico, mais intenso e palpável, as séries de imagens produzidas por ele de sua primeira companheira Yukiyo Kawakami e depois da sua segunda esposa – e principal musa – Yoko Wanibe (atriz de Nô) entre meados dos anosde 1960 e 1970, tornaram-se ícones de um universo íntimo que foi compartilhado aos poucos pelo fotógrafo ab initio junto ao público japonês. Anos depois, quando nos deparamos com o conjunto destas imagens na obra Yoko (1978), a sensação é de que o fotógrafo quis dividir a sua obssessão pela esposa conosco – uma espécie de voyerismo compartilhado – de forma natural, uma narrativa de treze anos de intimidade que vai se dissolvendo ( e nos seduzindo…) em imagens cotidianas entre a nudez de Yoko, sorrisos, caretas, sombras, close-ups, candids, gatos – elementos intrínsecos ao universo fukasiano – muitas imagens tendo como background o ambiente típico dos danchis (conjuntos habitacionais) japoneses onde o casal vivia. Intimidade pura.
Em entrevista para revista de fotografia Camera Mainichi em 1973, Yoko descreve o marido como um “incurável egoísta” (título da entrevista) :
We have lived together for ten years, but he has only see me inside the lens, and I believe that all the photographs of me were unquestionably photographs of himself.
Fukase um “incurável egoísta”? Talvez…O próprio fotógrafo faz mea culpa:
I kept dragging loved ones into my work in the name of photography, but I never could make anybody happy that way – not even myself. I wonder whether I’m truly enjoying myself when I take photographs?
Fukase e Yoko se divorciaram em meados da década de 1970, a dolorosa separação da musa levou o fotógrafo a buscar outros caminhos imagéticos para expressar o vácuo criado pela perda (nunca superada…), foi neste período transitório que musa(s) e corvos acabaram por se encontrar no imaginário fukasiano, o resto é história…
Nos dois grandes projetos de sua vida a palavra “obssessão” foi o leitmotv deste genial fotógrafo. Para Fukase a técnica se tornou – como deveria ser – apenas um instrumento para decodificar o seu olhar que aliado a sua intuição e a necessidade voraz de decodificar o “seu mundo”através das lentes, construiu uma narrativa densa, pungente e melancólica, por isso inesquecível. Fukase (inconscientemente cegado pelo egoísmo?) criou um universo próprio de musa(s) e corvos sedutor e memorável.
*The Photobook: A History volume I. Martin Parr and Gerry Badger (autores). Nova Iorque, Phaidon Press, 2012.p.306.
Links:
- https://www.theguardian.com/artanddesign/2010/may/24/masahisa-fukase-ravens-photobook
- http://www.wallpaper.com/art/masahisa-fukase-solitude-of-ravens-michael-hoppen-gallery
- https://www.theguardian.com/artanddesign/2015/jul/13/masahisa-fukase-photographed-nothing-but-his-wife
- http://www.diesel.co.jp/art/en/masahisa_fukase/
Tag:japonês, Masahisa Fukase