Crónica de fotografia de Natureza
Viagem, aventura e fotografia nas paisagens costeiras selvagens a Norte do Cabo de São Vicente, Portugal
Conheça as histórias, emoções, perigos e muitos aspectos da fotografia de natureza mais extrema em meio selvagem na Jornada de fotografia na Costa Vicentina no decorrer do pico de cores de Primavera, pelo fotógrafo de Natureza Hélio Cristóvão.
Os motivos a fotografar:
- detalhes/intimismos de escarpas, rochedos, arrifes;
- grandes vistas com plantas silvestres nas arribas costeiras;
- enseadas e praias nas marés baixas à hora do nascer pôr-do-Sol;
- plantas selvagens;
- Recorte dos montes e vales costeiros, revestidos de verde da vegetação de Primavera.
Locais:
- Enseadas e escarpas a Norte do Cabo de São Vicente;
- Costa selvagem entre Murração/Praia da Barriga e Castelejo;
- Costa selvagem entre a Grota/Torre de Aspa e Malhão do Infante.
Na Primavera, durante as últimas semanas de Abril, altura em que as cores das planícies, serranias e orla marítima estão ao rubro, estabeleci o meu regresso às paisagens costeiras de espectacular beleza e dramatismo. Aproveitando a intensidade da Primavera, optei por explorar as arribas altas e escuras da Costa Vicentina, que nesta altura do ano se encontram encimadas por extenso coberto de vegetação em flor.
O plano estava traçado. A viagem seriam três a quatro dias de fotografia, permanecendo no terreno desde o nascer ao pôr-do-Sol, explorando zonas costeiras desconhecidas, por vezes das mais inacessíveis, percorrendo topos de arribas, tendo a vegetação como motivo essencial.
Este é o relato das últimas horas desta jornada, o último dia, antes do regresso de 400 Km a casa. É o relato de fotografar ao Pôr-do-Sol de Sábado, 24 de Abril de 2010, onde sem que eu ainda o soubesse, iria experimentar a mais perigosa e arriscada descida e subida de penhasco que fiz na minha vida (até à data), para alcançar uma enseada situada entre a Carrapateira e Vila do Bispo.
Durante todo esse dia a luz nunca foi boa para fotografar paisagens amplas e grandes vistas, há que conhecer a “qualidade” da luz (própria) para os vários motivos, e o céu muito nublado – nuvens altas, completamente coberto, sem textura – um céu branco, que não apresenta interesse ao incluir numa fotografia de paisagem. Esta luz difusa e cálida, no entanto, ao fotografar detalhes de Natureza, plantas e perspectivas mais “fechadas” permite evitar sombras e grandes contrastes, podendo vir a gerar bons resultados.
“SILVER EYE” 17:43h – 12mm f/22 1/2s ISO100, filtro polarizador cir. – 14-bit RAW 12,2MP
Durante a tarde percorri a pé trilhos ao longo dos topos das arribas entre as Praias da Barriga e Murração, ocasionalmente descendo a algumas praias, entre elas o Mareadouro da Escada que implica uma descida de 100mt de altura, apenas possível com o auxílio de cordas que os pescadores lá fixaram, vencendo grandes desníveis e inclinações sob um piso de xistos erodidos. Lá em baixo, fotografei a falésia que delimita a praia a Sul, tendo em primeiro plano rochas cobertas de musgos, cujos tons verdes por vezes tornavam-se quase fluorescentes, devido à suavidade da luz! As cores estavam vivas.
Subi a escarpa, era a hora de me dirigir para Norte, e, contornando os três grandes vales seguintes desço novamente, atravessando o leito do Barranco da Pena Furada. Sigo em direcção a uma praia ainda a Sul de Murração, onde um gigante pináculo piramidal ostenta cerca de 21 mt de altura. O céu não ajudou a fotografar a paisagem, e entretanto chegava a chuva. Nestas ocasiões é importante estar preparado. A máquina fotográfica deve ser protegida com capa impermeável, e o fotógrafo também! Um casaco corta-vento impermeável, leve e que não comprometa a maleabilidade é aconselhável. Fotografo o cenário idealizando já uma transformação para o preto-e-branco, acrescentando o necessário dramatismo entre a claridade do céu e a escuridão global na cena.
“DARK GUARDIAN” 18:42h – 17mm f/22 1/2s ISO100, filtro polarizador cir. – 14-bit RAW 12,2MP
São agora 18:30h, e tenho de tomar uma decisão dentro dos próximos 10 minutos: Espero que as condições nesta praia melhorem – que o céu se apresente com algum detalhe, nem que por momentos apenas umas nuvens surgissem – ou sigo de imediato para a subida que me deu acesso à praia, voltando para trás, uma vez que o local onde quero fotografar ao Pôr-do-Sol é ainda distante para Sul. Nesta última alternativa, há ainda que contornar um pequeno vale que fica na outra vertente da cumeada da praia onde estou, mais, existe ainda uma descida de falésia cujo trilho ainda não conheço completamente. O tempo está a ficar escasso. Volto para trás, e observo o horizonte. Após um dia sem qualquer dramatismo no céu, agora observa-se alguma luz dourada que já está a aparecer. Uma luz típica de trovoada. Mas parece que as condições estariam a mudar. Reúno todas as minhas energias e subo vigorosamente, quero chegar ao destino e tenho pouco tempo.
“SPIRITUAL GATE” 20:12h – 12mm (APS) f/22 1/2s ISO100 e 1/3s ISO200,
filtro polarizador circular, pano de limpeza microfibra, bolha de nível, tripé, cabo disparador 14-bit RAWs 12,2MP
Estou na crista da escarpa onde tem origem o trilho. A luz ainda está muito escura, chove, o chão está escorregadio. Estou a 105 mt. de altura sobre o oceano. Lá em baixo, vejo a escarpa e o local exacto onde pretendo fotografar. Mesmo após a descida, ainda haveriam cerca de 350 mt. de caminhada na enseada, sempre sob rochas, por vezes polidas e escorregadias.
Durante os primeiros 30 mt. de descida, estou face ao primeiro grande perigo: devido às chuvas fortes ocorreram deslizamentos na arriba, e o trilho da largura de 2 pés juntos foi cortado e divide-se à distância de pequenos saltos em alguns metros, mesmo em cima da vertiginosa escarpa, quase vertical, a dezenas de metros sobre o mar e rochas; este é o momento em que é necessário acreditar. Estamos nos limites do impossível, fazendo equilíbrio para o penhasco tentando agarrá-lo bem… atravesso com muita calma, qual trapezista numa falésia. É preciso ter “sangue frio”, preferia não pensar por agora que teria de cá voltar aquando da subida. Eu quero continuar.
Chego ao patamar dos 70mt. de elevação, é uma proeminência, um “pequeno” cabo que se estende para o mar e termina lá bem em baixo num pesqueiro de camadas estratificadas de xisto, a “Furna do Mirouço”. Quando chego ao pesqueiro, verifico que afinal… ainda estou a uns 50 mt. de distância da enseada para trás de mim! E talvez a uns 15 mt. de altura! E já não há trilho… A única solução é caminhar sobre os patamares da rocha, que se ergue em camadas laminadas, escorregadias. Avanço pela rocha e detecto uma corda, muito difícil de alcançar. Está cravada com ferros em vários pontos, e o objectivo é atravessar lateralmente – contornando a rocha. Não há alternativa. Sem essa corda, seria impossível atravessar. Com todo o cuidado avanço, ainda muitos metros acima do mar, mas com espaço apenas para um pé de cada vez e com a corda a segurar a minha vida. Após a corda, há que saltar para o seixo rolado da enseada.
“WILD GLOW” 20:10h – 14mm f/22 1s ISO200, filtro polarizador cir. – 14-bit RAW 12,2MP
Estou sozinho na verdadeira costa selvagem. Com a mochila às costas e tripé empilhado nela – mais de meia dúzia de quilos de equipamento, salto de rocha em rocha, a bom ritmo até chegar à ponta de uma das mais impressionantes escarpas da Costa Vicentina. Chegar a este ponto é um feito de experiência acumulada. Uma inexplicável motivação leva-me a pressentir que iria fazer a minha fotografia! Confronto de frente a escarpa dos Caixões. O mar está agitado, mesmo ali à beira do oceano, neste local é preciso observar com muita atenção o comportamento das ondas fortes, estou em plena zona de rebentação, ocasionalmente pego no tripé com a máquina e dou uma corrida para me afastar das maiores vagas. Começa a chover, e fica bastante difícil estudar enquadramentos e compor sobre estas condições. Eu estava a experienciar em tempo real o expoente máximo do puro dramatismo da Natureza, à medida que a chuva fraqueja e cessa, por trás de mim revela-se agora a formação de um espectacular arco-íris acima da linha costeira das arribas! A luz começa a transformar-se, o céu está cada vez a ficar menos nublado e a começar a explodir de cor à medida que o Sol baixa no horizonte. Estou a fotografar.
Optei por voltar para trás até ao local onde havia descido à enseada, mesmo sabendo que ainda não tinha atingido o pico de cores que aquela luz iria oferecer no crepúsculo. Mas não havia tempo. O local é demasiado perigoso e era preciso tempo para voltar a subir a arriba. Eu já tinha feito a minha fotografia aproveitando vários momentos de luz espectacular. Chegando ao canto a Sul das arribas, antes de iniciar a subida, assisto agora a um céu inesquecível, nuvens vermelhas, tenho de fotografar estas cores. Monto novamente tripé e máquina. Sem perder muito tempo, e em questão de poucos minutos fiz ainda a última fotografia, incidindo sobre um rochedo que optei por centrar na composição.
“TWILIGHT CLAW” 20:25h – 16mm f/22 1s ISO320, filtro polarizador cir. – 14-bit RAW 12,2MP
Vou subir por um local diferente, há uma alternativa, uma corda que se estende por vários metros de altura, sem sequer ver o que está a seguir, não há trilho visível, mas ainda assim arrisco. Prefiro arriscar as minhas hipóteses ao invés de voltar à corda e rochas por onde desci. Agarro esta corda e mais uma vez lhe confio tudo. Chegando ao fim desta corda, não há caminho perceptível daqui para cima. Está a anoitecer e sinto-me encurralado. Resulta a impressão que dada a inclinação fortíssima deste precipício, o rochedo erodido deslizou, e onde poderia haver um trilho visível, já não existe. Este foi o momento emocionalmente mais forte e exigiu muito controle, observo à minha volta, e vou confiar toda a minha mente à subida. Prontamente começo a escalar à mão livre, agarrando ramos cravados na terra, agarrando rocha e a própria terra, a subida é quase vertical, apoio os pés no que me pareciam marcas semelhantes a pequenos degraus da espessura de um pé como que definindo um carreiro de passagem; Consigo vencer esse trecho de subida e volto ao caminho inicial! Há ainda alguns obstáculos, terei a minha garantia de vida quando chegar ao carro. Nunca mais volto a este local sem as minhas próprias cordas e outras medidas de segurança. Senti enorme alívio ao chegar ao carro, iniciando a viagem de regresso escrevo uma mensagem de telemóvel a colegas e amigos:
“Acabei de chegar ao carro vindo de uma enseada selvagem da costa vicentina. As falésias mais perigosas onde estive na minha vida. Descida e subida de escarpa quase a pique, dezenas de metros acima do mar. Por vezes escalando a mão livre outras com auxílio de cordas – onde parece impossível sequer passar. Passei por momentos de medo e desespero sem conhecer o caminho. E de alegria por chegar bem de volta ao TOPO! Sozinho. Mas fui recompensado com a luz para fotografar todo o dramatismo dos Caixões – o nome do local. É hora de voltar para a família. Agora vou a ouvir Eddie Vedder – Into the Wild. Bem alto.”
A Costa Vicentina tem as paisagens costeiras da contemplação e do fascínio, mas apenas uma mão de praias conhecidas e facilmente acessíveis, no entanto, praticamente toda a orla costeira, por mais elevadas que sejam as escarpas, têm um ou mais acessos. Acontecem situações inacreditáveis e há descidas que deixam a cismar como é possível? Mas os pescadores traçam os seus caminhos, e a dezenas de metros, com ou sem cordas, pelas arribas e através de carreiros entre rochas descem aos pesqueiros.
No campo, em acção e nas paisagens do Sudoeste de Portugal
Texto e fotografia por Hélio Cristóvão
Revisão técnica e científica por João Matos
Email: nature.pt@gmail.com
Twitter: @heliocristovao
Portfolio : Via PhotoPortfolios