Carnaval: Festa dos Anônimos
Eu nunca gostei muito de carnaval, nem quando era mais jovem, os bailes, a impressão que me davam, dão ainda, é sempre de exageros, de descontrole total, como se as pessoas tirassem três dias para cometer todo tipo de sandice sem responsabilidade alguma. Eu me lembro de ter ido a dois ou três bailes de carnaval na minha adolescência, e não tenho nenhuma boa recordação desses bailes. Eu gostava de assistir pela TV aos desfiles das escolas de samba, hoje já não tenho mais tanta paciência, mas houve um tempo em que eu ficava horas assistindo, principalmente o espetáculo grandioso que é o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro.
Depois já adulto, aproveitava os feriados do carnaval para viajar, com a chegada dos filhos, saia para acampar com eles todos os anos nessa época, e era muito mais divertido. Em algumas cidades do interior as festas do carnaval me atraiam pela descontração das pessoas sem os exageros das capitais, eram mais familiares, mais seguras e em alguns casos até tradicionais, como em São Luiz do Paraitinga, cidade do vale do Paraíba no estado de São Paulo, onde acontecia uma competição de blocos, mas tudo muito amador, muito simples. Em Tiradentes, no estado de Minas Gerais, o carnaval também é muito tranquilo, nos desfiles que acontecem no centro da cidade, entra quem quiser e o ambiente, o clima da festa é bem familiar, e eu aproveitava para fotografar.
Quando estava terminando minha pós-graduação, me deu um “estalo”, e se eu fotografasse um desfile das escolas de samba, como seria, e como fazer? Aí fui atrás. O que era preciso? Bem, só podem fotografar os desfiles pessoal credenciado… Sim, e como me credenciar? Nessa época, e acredito que hoje ainda seja, quem credencia profissionais para trabalhar nos desfiles em São Paulo, é a SPTuris empresa oficial de turismo e eventos da cidade, e para conseguir o credenciamento é preciso estar ligado a algum veículo de comunicação, jornal, revista, site, TV, e é preciso comprovar essa ligação. Eu trabalhava na Imprensa Oficial do estado, mas a Imprensa Oficial não cobria esse tipo de evento, então tentei como aluno do curso de pós-graduação em fotografia que eu fazia pelo Senac-SP, e consegui. Mas não foi fácil. São muitos os interessados e tive a impressão de que funcionava um tipo de esquema para beneficiar alguns privilegiados, então nunca havia credencial para todos, e muitos profissionais, principalmente alguns de cidades do interior, voltavam para casa frustrados.
Bem eu finalmente consegui a minha credencial, depois de um “chá de cadeira” de mais de duas horas vendo a frustração de alguns colegas e imaginando se eu também não sairia dali derrotado. Passado o drama do credenciamento, era hora de correr para casa e me preparar, o desfile começaria às 21 horas, eu não tinha muito tempo. Por sorte nessa época eu morava na zona norte, não muito distante do sambódromo, então dava para me preparar com alguma calma. Bem o que levar? Câmera eu só tinha uma Canon EOS 20D, então era com ela que iria, lentes eu já tinha algumas que me deixavam tranquilo, se fosse fotografar na “passarela do samba”, que é como chamam o local por onde as escolas “evoluem”, eu ficaria confinado num corredor não muito largo e não precisaria de uma lente com uma distância focal muito grande, só que na dúvida levei todo o meu kit de lentes, uma 24x70mm, uma 16x35mm, uma 70x200mm e uma 50mm, um flash 420 da Canon, muitas pilhas e vários cartões de memória.
Preparado e ansioso lá fui eu para meu primeiro desfile de escolas de samba, próximo ao sambódromo mais um drama, um trânsito infernal na praça Campo de Bagatelle, perdi uns bons quinze minutos para percorrer uma distância de 150 metros, muita gente já estava chegando para assistir aos desfiles e a entrada para o estacionamento estava congestionada. Começou a bater um certo desespero. Quando consegui chegar na entrada do estacionamento pude relaxar, faltavam ainda uma meia hora para o início dos desfiles, então era conseguir uma boa vaga para deixar o carro, pegar minhas tralhas todas e correr até aos portões do Anhembi.
Finalmente entrei
Já nos portões entrei direto na chamada “concentração”, que é o espaço onde as escolas se preparam, dão os últimos retoques nos carros, nas alegorias, organizam as alas na sequência em que vão entrar na pista, repassam o enredo, posicionam os destaques nos carros alegóricos, as pessoas retocam a maquiagem enquanto arrumam os últimos detalhes das fantasias, e vão pro aquecimento. Dá prá sentir a adrenalina do momento que antecede à entrada na pista, são em média 3 mil componentes, todos ansiosos pelo início do desfile, alguns rezam, outros choram enquanto outros já em pleno estado de euforia ensaiam passos coreografados nas diferentes alas. Decidi, é aqui mesmo que eu vou ficar, tudo é muito intenso na concentração, o nervosismo é quase geral, alguns mais experientes demostram uma tranquilidade meio falsa, porque quando a bateria começa o seu “aquecimento”, não tem ninguém que não seja tomado por uma vibração intensa, um estado de espírito competitivo, parece que cada um dos componentes da escola está disposto a dar a vida para que ela tenha sucesso, saia campeã. É onde rendem as melhores fotos, ao menos as mais naturais.
A vez dos anônimos
Quando a escola entra na “avenida”, claro, cada pessoa participante do desfile está ao menos tentando dar o seu melhor, mas muitos ficam o tempo todo procurando uma câmera, de tv ou de algum fotógrafo na esperança de aparecer em algum lugar e ser reconhecido, os “destaques” são alguns “notáveis” ou quase famosos, que aproveitam os desfiles justamente para isso, aparecer, então estão posando o tempo todo, muitos nem fazem parte da “comunidade” e mal sabem o enredo da escola. Eu posso estar enganado, mas foi isso que eu senti, aí optei por ficar na concentração, num outro desfile, das escolas de segundo grupo, eu acompanhei do lugar reservado à imprensa na passarela e não gostei muito do resultado, ainda acho a concentração mais interessante. Agora no geral, o carnaval é onde os milhares de “anônimos” ganham luz, viram protagonistas mesmo que por pouco tempo, vivem seu momento de glória, na música brasileira são vários ou autores que trataram disso, dessa “glória efêmera”, e esse verso resume bem isso. ”… A felicidade do pobre parece, a grande ilusão do carnaval, a gente trabalha o ano inteiro, por um momento de sonho pra fazer a fantasia de rei, pirata ou jardineira, e tudo se acaba na quarta-feira…”
A mais longa das noites
Fotografei a noite inteira, claro empolgação, inexperiência, e aquela sensação que acho que é comum a todos os fotógrafos, eu ainda não fiz A foto, e fui ficando, amanheceu e eu ainda estava lá, cansado, morrendo de sede, mas ainda procurando. A última escola entrou e eu me dei por satisfeito, desmontei minha câmera, guardei minhas lentes e me arrastei até onde tinha deixado o carro. Em casa, na hora de editar o material é que me dei conta do quanto tinha fotografado, muitas, mas muitas fotos mesmo, a maior parte “mais do mesmo” então descartáveis, ao final sobraram algumas tantas dignas de publicação ou de arquivo, nada excepcional mas como experiência me valeu muito.
Carnaval e pandemia
Esse ano não vai haver carnaval, ao menos oficialmente estão suspensos os desfiles das escolas de samba e os bailes tradicionais no Brasil, então quem por acaso quiser fotografar os desfiles, terá que esperar até que se chegue a alguma decisão sobre novas datas, até agora nada está definido, mas quando acontecerem, se acontecerem e alguém queira se aventurar pela primeira vez na cobertura dos desfiles vale lembrar, procurem o credenciamento com antecedência, preparem o equipamento, preparem-se para muita adrenalina e algum cansaço, e não esqueçam de levar água e capa de chuva, eu tomei muita chuva no sambódromo, boa sorte e boas fotos.